Meu nome é José Roberto dos Santos Júnior, sou homem, branco, cis, gay.
Quero contar um momento de minha história, um recorte no tempo que se
inicia entre anos 80 e 90, em Angra dos Reis - RJ, período de minha
infância, que diz respeito à educação, o meu processo de alfabetização.
Nasci em Lavras - MG e fui morar em Angra com 1 ano de idade. Para o
início da minha história, peço-lhes que imaginem uma criança, entre 6, 7
e 8 anos de idade, deitado sobre uma caixa d’água num dia ensolarado e
com muitas nuvens, imaginando bichos e pessoas nas formas que as nuvens
adquiriam com o soprar do vento e assim passava o meu tempo de criança.
Uma única nuvem trazia vários significados e sentidos. Eu demorei para
aprender a ler e escrever, eu me lembro que eu desenhava muito, coloria
muito, brincava muito. Sou filho caçula, portanto, não tive irmãos cujas
as idades permitissem brincarmos juntos, ou seja, todos já eram
adultos. Eu me lembro de sair pela cidade com a minha irmã e perguntar
para ela, a todo momento, o que estava escrito nas placas, nos cartazes,
nas cartilhas das igrejas, nos panfletos que nos entregavam nas ruas,
nos saquinhos de biscoitos etc. Eu me sentia extremamente angustiado,
ansioso, triste e incapaz de aprender e a decorar aquelas letras todas.
Eu tinha muita vontade de saber como a “mágica” acontecia, como que as
pessoas aprendiam a ler, como conseguiam ler em voz alta, como escreviam
juntando letrinha por letrinha e aquelas letras emparelhadas
significavam algo, conversavam entre si, de mãos dadas, exprimiam alguma
coisa, ou seja, diziam algo para o mundo. Tive muita dificuldade na
escola, eu me lembro muito disso, da professora chamar minha atenção
para a aula e eu não conseguir responder, compreender e interagir com o
conteúdo. Era como se de fato eu não estivesse ali. As aulas eram
enfadonhas, maçantes, angustiantes e pareciam não ter fim. O recreio me
“salvava” porque era o momento em que eu conseguia interagir com o lado
lúdico. Mas em seguida, começava tudo outra vez... As nuvens eram
carregadas. Intuitivamente, eu procurava meios para conseguir me manter
na sala, em silêncio e passar o mais despercebido possível. Uma
estratégia que eu utilizava era tentar inventar uma “dor de cabeça” para
faltar das aulas. Por conta dessa dificuldade na escola me atrasei. Foi
quando minha mãe, Maria Idalina dos Santos, decidiu me colocar numa
escola particular especializada em alfabetização, chamava-se Jean Piaget
que ficava localizada no bairro do Balneário. Eu me lembro no primeiro
dia que tive contato com a diretora do colégio, ela abriu a sala para
nós, era incrível. Estantes cheias de livros. Livros grandes e pequenos,
mas todos cheios de cores. Enquanto ela conversava com minha mãe sobre a
proposta de ensino, eu fiquei olhando para aquela estante. Ela disse
que eu poderia escolher um para “ler” e ver as imagens. Comecei a
folhear ao meu estilo de criança sem contato nenhum com livros e, no
mesmo instante, ela estava muito atenta ao meu folhear de páginas e me
ensinou o jeito correto de folhear sem amassar as páginas. A magia
aconteceu, fez sol no meu dia. Foi a primeira vez que eu aprendi de
fato. Fiquei nessa escola por um ano. Na época, a inflação estava
grandiosa e as coisas subiam de preço de um dia para o outro e dobrava
de preço de um mês para o outro. Foi ficando insustentável para os meus
pais me manter na instituição. Confesso que foi o ano de maior
aprendizado da minha vida. Aprendi a ler e a escrever. Aprendi a fazer
continhas que antes pareciam impossíveis para mim. Aumentei meu
vocabulário, fiz novas amizades. Brincávamos com pneus nos intervalos e
disso eu me lembro em especial porque inventei que os pneus eram nossos
carros ou motos, então com as mãos, nós íamos tocando eles e
“pilotando”, era muito divertido. Nessa escola, eu aprendi a nadar,
principalmente a “boiar”. É importante que saibamos boiar antes mesmo de
nadar, porque o boiar nos salva do cansaço extremo das braçadas. Quando
chegou o fim do ano, no último dia de aula, tivemos uma festinha no
colégio e foi muito divertido. Assim que eu cheguei em casa, minha irmã
me contou que eu não iria mais para o colégio no ano seguinte. Foi um
choque para mim, eu não pude me despedir de meus colegas. Depois disso,
fui para uma escola no bairro do Retiro, a escola se chamava Escola
Municipal Frei João Moreira. Ali, fiz novos amigos, mas também conheci
aquilo que muitos anos depois chamariam de “bullying”. Foi nesse colégio
que eu comecei a entender que eu era “diferente” dos outros meninos.
Eles me chamavam de “bixa”, mulherzinha, de “Seu Peru” fazendo uma
alusão à personagem da e “Escolinha do professor Raimundo”. Havia
meninos maiores na turma, os ditos na época de “repetentes” que sempre
queria nos bater e nos ameaçavam no final das aulas. Foram dias de
tempestades e ventanias. Eu continuava a ser um “aluno” mediano, ou
seja, tingia meu boletim de mais cores vermelhas que azuis. Estar
constantemente nas aulas era desafiador e mais triste que alegre.
Lembro-me que foi nessa época que iniciei a minha paixão por lapiseiras.
Quando podia, eu juntava algumas moedas e comprava uma lapiseira, por
vezes, algum material de papelaria, mas a predileção era por lapiseiras.
Fazia muitos desenhos e comecei a ler mais livros e desenhava as
personagens da maneira que eu as imaginava. Os primeiros livros que li
foram: O Ratinho Cinzento e o Trem - Stella Leonardos; Lambe o Dedo e
Vira a Página - Ricardo da Cunha Lima e João e Maria - Cordélia Dias
d’Aguiar. Amava ler e reler esses livros. Fui ficando maiorzinho e
comecei a despertar para o amor pelos livros. Inclusive, fiz minha
inscrição na Biblioteca Municipal de Angra e ficava admirado e encantado
com aquele universo de livros e, principalmente, pelo silêncio. Quando
terminei a 4ª série, que atualmente chamamos de 5º ano, meus pais
decidiram voltar para o interior de Minas, uma cidadezinha chamada
Ijaci. Ali, estudei na Escola Estadual Maurício Zákhia onde continuei
minha caminhada de aprendizagem e socialização com uma cultura um pouco
diferente da minha. Fiz novas amizades, o bullying persistia, mas eu já
não me importava tanto. Eu sabia que teria que aprender a “conviver” com
aquilo que as pessoas me chamavam e me ridicularizavam. Foram dias
muito nublados. Continuei sendo um aluno medíocre, porém, com notas um
pouco melhores no ensino infantil. Em Minas, os “alunos” que se
destacavam com maiores notas ao longo do ano, ganhavam medalhas. Eu
achava muito diferente essa cultura de premiação, de meritocracia. Isso
nos dava uma ideia de que aqueles que se esforçavam muito, conseguiam
uma premiação. Com um recorte de várias outras coisas que foram se
sucedendo em outros campos de minha vida, eu estico minha história já no
ensino médio, onde me aproximei de uma turminha muito legal de meninas
muito estudiosas e acolhedoras. A partir do momento que eu me inseri no
grupo delas, comecei a aprender a estudar melhor e assim melhorar as
minhas notas. Eu me lembro que no 2º ano, eu me esforcei bastante,
imbuído do desejo de possuir uma daquelas medalhas douradas lindas que
eu sempre via as pessoas ganhando. Encerrei o ensino médio como “melhor
aluno” do 2º e 3º anos. Isso de uma certa maneira elevou a minha
autoestima porque eu nunca havia me destacado em nada. Isso me despertou
o desejo de cursar uma universidade pública. Foi quando eu tive contato
com o amargo da reprovação no vestibular e não foi apenas uma vez. Eu
era muito bom “aluno” no meu colégio, mas diante das provas do
vestibular, eu me sentia muito pequeno e desprovido de conhecimentos.
Foi aí que compreendi que a meritocracia era uma falácia. Você poderia
se esforçar, mas a base do ensino era “fraca” e competir com “alunos” de
colégios particulares era muito discrepante. Os cursinhos preparatórios
eram caríssimos. Naquela época, não existia o ENEM (Exame Nacional do
Ensino Médio). Portanto, leitores, vocês talvez consigam imaginar que a
meritocracia resolvia muito pouco na questão da aprovação. Depois de
algumas tentativas e fracassos, decidi fazer um curso de Técnico em
Enfermagem no Colégio Cenecista Juventino Dias (CNEC), em Lavras-MG,
minha irmã me ajudou financeiramente nessa empreitada. Consegui destaque
na turma como um dos melhores “alunos” e, assim, eu me formei e voltei
para o interior do RJ na tentativa de conseguir emprego. Não conseguindo
nada em minha área comecei a trabalhar com autopeças e desisti da área
da saúde, porque constatei que eu poderia me dedicar muito, mas que as
oportunidades não eram para todos. Você tinha que ter um “peixe” e meu
aquário estava vazio. Tive vários momentos de crise existencial e
depressão e os livros sempre me acolheram. Eram dias de tempestades com
furações destruidores. Com o passar dos anos, fui sentido necessidade de
fazer uma graduação. Decidi conciliar meu trabalho com os estudos.
Investir em educação, para mim, era o melhor investimento a ser feito.
Foi então que me formei em Letras pela Faculdade Anhanguera, em Paraty -
RJ. O primeiro do meu núcleo familiar a alcançar o ensino superior.
Experienciei um período de muito aprendizado e o “aluno” passou a ser
estudante. Compreendi as reflexões de Paulo Freire quando ele afirmava
que a educação não pode ser “bancária”, mas sim libertadora... Eu me
formei e dei aulas em Paraty mesmo. Eu me deparei com vários tipos de
problemas sociais e limitações do ensino. Com isso, faço mais um recorte
no que chamamos de linha do tempo e, agora, “costuro em minha colcha de
retalhos” o meu retorno para Minas onde entrei para o curso de Nutrição
na Universidade Federal de Lavras e, recentemente, eu me tornei
nutricionista. Minha segunda formação em nível superior. Estou muito
feliz. Não existe apenas um caminho para nossas vidas. A vida é cheia de
possibilidades de aprendizagens e de reinvenções. Avançamos muito em
tecnologia e, ao longo da minha trajetória eu pude perceber várias
transições tecnológicas, desde a cabine telefônica que pagávamos para
falar por alguns caríssimos minutos, o “orelhão” em que depositávamos
fichas e depois inseríamos o cartão até chegar aos aparelhos celulares
analógicos e, agora, digitais... O campo em que quase não avançamos, ou
avançamos muito pouco foi na educação que, a cada ano vem sofrendo um
“desmonte” porque nunca foi prioridade do governo, principalmente o
atual. A sociedade caminha lentamente no combate a toda forma de
preconceito e opressão. É como se o céu estivesse sempre encoberto por
nuvens carregadas que não nos permitisse criar e vivenciar nada, muito
menos sentir o calor e o brilho do sol. Percebi ao longo da minha vida
que o preconceito que eu sofria enquanto criança, adolescente e,
posteriormente, na vida adulta, só se somatizou a outros preconceitos,
ou seja, camadas se sobrepondo a outras camadas, mas isso também não me
impediu de entender o meu lugar social e de compreender a importância de
me posicionar. Sigo resistindo, existindo, insistindo na educação como
melhor maneira de fazer com que nossas crianças e, também, jovens e
adultos, possam sonhar com uma vida melhor. Por políticas públicas que
alcancem pessoas menos privilegiadas de maneira efetiva. Um Brasil
melhor só é possível quando é melhor para todas e todos brasileiros e
não somente para alguns. Desejo que faça sol em nossas vidas. Deixo um
grande abraço e agradecimento aos meus colegas e professores que
estimularam, inspiraram e me auxiliaram em minha construção pessoal ao
longo da vida. À minha mãe e minha irmã que acreditaram e acreditam em
mim. Pensa que parei por aqui? Jamais! Sempre achei as colchas de
retalhos mais interessantes.
Roberto Terra
Eu fui muitas coisas, deixei de ser algumas. Estou em processo de construção e feliz com os resultados que consegui até aqui. Amanhã, não sei. O importante é contar mesmo que em partes. E você, contou a sua história?